• A audiência pública do caso ocorreu nos dias 26 e 27 de abril de 2023, durante o 156º Período Ordinário de Sessões da Corte Interamericana realizado em Santiago no Chile
  • EarthRights International presentó Amicus Curiae como respaldo a este emblemático caso.

As Comunidades Quilombolas de Alcântara aguardam sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos em caso emblemático movido contra o Estado Brasileiro. A audiência pública do caso ocorreu nos dias 26 e 27 de abril de 2023, durante o 156º Período Ordinário de Sessões da Corte Interamericana realizado em Santiago no Chile, e agora as Comunidades Quilombolas de Alcântara e a sociedade civil brasileira aguardam com expectativa a emissão de sentença.  O caso já é histórico, não somente pelo pioneirismo da confrontação de atos realizados também pelas Forças Armadas Brasileiras em um Tribunal Internacional, mas também porque será a primeira vez em que a Corte Interamericana se pronunciará sobre os direitos das comunidades quilombolas brasileiras conectados à propriedade ancestral e coletiva de seu território.

As comunidades quilombolas são comunidades afrodescendentes caracterizadas por seus modos de vida tradicionais e territórios ancestrais, com trajetória histórica e identidade cultural própria desenvolvidas desde relações específicas com o ambiente, marcadas por práticas de resistência a diferentes formas de dominação. Historicamente, os “Quilombos” se constituíram no Brasil a partir da resistência à escravidão e ao racismo. São reconhecidos pelo Estado brasileiro como sujeitos de direitos coletivos, com procedimentos estabelecidos na legislação para garantia do seu território, com órgãos estatais encarregados do processo de identificação, demarcação e titulação coletiva de suas terras. Em 2008, as comunidades quilombolas foram equiparadas a povos tribais para efeitos de proteção pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – reconhecimento que foi conquistado após denúncia realizada justamente pelas comunidades quilombolas de Alcântara na OIT.

Photo: MABE archive

Segundo mapeamento preliminar do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), no Brasil existem cerca de 6 mil comunidades quilombolas. Parte considerável delas – cerca de 1500 comunidades – ficam no estado do Maranhão, que tem a Amazônia como um dos seus biomas e está localizado na região Nordeste do Brasil. A grande biodiversidade da Amazônia resulta também da multiplicidade de povos e comunidades tradicionais que nela habitam. Embora os povos indígenas sejam os mais conhecidos, há também, dentre outros, ribeirinhos, seringueiros extrativistas, pescadores artesanais e quilombolas. É justamente na Amazônia maranhense que se encontram as comunidades quilombolas do município de Alcântara.

O caso levado pelas Comunidades Quilombolas de Alcântara ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos diz respeito à responsabilidade internacional do Estado brasileiro por violações de direitos humanos, a partir da década de 1980, de 152 comunidades quilombolas, decorrentes da instalação, operação e expansão de uma base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, empreendimento conhecido como Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Todo o processo de concepção, planejamento, instalação e operação do CLA foi e tem sido realizado sem consulta livre, prévia e informada (CLPI) para a obtenção do consentimento das comunidades quilombolas afetadas, bem como sem os devidos Estudos de Impactos Sociais e Ambientais (EISAs).

Já de início, a chegada do empreendimento foi seguida da remoção forçada de dezenas de comunidades quilombolas da região, violando o direito à propriedade ancestral. As comunidades foram reassentadas em “agrovilas” sem condições de moradia digna e em circunstâncias que dificultaram ou impossibilitaram a continuidade de seus modos de vida – com o impedimento ou distância do acesso ao mar para pesca, em terras inférteis ou pequenas demais para o plantio e com escassez de água –, rasgando o tecido social que unia diversas das famílias e povoados. O relatório de mérito da CIDH aponta que o Estado brasileiro não realizou um processo de reassentamento adequado, não indenizou integralmente às famílias e não permitiu às comunidades gozar dos eventuais benefícios do projeto.

Photo: MABE archive

Para as comunidades quilombolas que seguiram em seu território, a vida não tem sido menos difícil. Em distintas ocasiões, o Estado brasileiro implementou políticas de ampliação da área do CLA e orientou suas atividades para a celebração de acordos comerciais com outros países para lançamentos de foguetes, notadamente a Ucrânia e os Estados Unidos da América. Tais políticas comerciais de expansão e uso do CLA, somadas à demora na titulação de seus territórios tradicionais e o convívio com uma série de impactos desconhecidos, instituiu um ambiente permanente de insegurança e violações de direitos das comunidades, que vivem sob ameaça de expulsão de sua terra, incursões de agentes externos e ações violentas de reintegração de posse.

Durante a audiência pública realizada pela Corte Interamericana em abril deste ano, o Estado brasileiro reconheceu as violações ao direito de propriedade das comunidades quilombolas de Alcântara pela ausência de titulação do território, e ao direito à proteção judicial, em decorrência da demora processual e da ineficiência das instâncias judiciais e administrativas, emitindo uma declaração oficial com pedido de desculpas em relação a essas violações – questionado pelas comunidades e associações peticionárias. Quanto às medidas de reparação, o Brasil se comprometeu com a titulação progressiva do território quilombola de Alcântara – ao menos das terras já pertencentes à União – e também a viabilizar a destinação de recursos financeiros a título de compensações, mas ainda sem destinação orçamentária. Apesar de reconhecer parte das violações, procurando afastar condenação no mérito, o Estado brasileiro argumentou que a Corte Interamericana não seria competente para julgar o caso por razões temporais, visto que à época da criação do empreendimento o país ainda não havia aderido ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a Convenção 169 da OIT ainda não tinha sido criada. A posição do Brasil foi interpretada como incoerente por alguns setores, que apontaram a dificuldade do governo Lula de alinhar as posições contraditórias dos setores progressistas e conservadores que compõem a atual gestão.

Para as entidades peticionárias do caso perante a Corte, o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), a Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), o Sindicato dos Trabalhadores de Rurais e da Agricultura Familiar de Alcântara (STTR), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras (MOMTRA) e a Justiça Global, o pedido de desculpas é incompleto e suscita dúvidas. As organizações denunciam a ausência de reconhecimento do direito à propriedade associados ao deslocamento forçado das comunidades, além de insegurança sobre a “titulação progressiva” proposta pelo governo, que não define qual a extensão e localização dos territórios a serem titulados nem qual o formato jurídico de tais títulos. As organizações temem que, mais uma vez, não sejam consultadas e nem possam participar das instâncias decisórias.

EarthRights International contribuiu para o caso através de um Amicus Curiae

EarthRights International (ERI) aportou suas contribuições no caso por meio do instituto denominado Amicus Curiae (Amigo da Corte), enquanto organização não-governamental com conhecimento, experiência e atuação na defesa dos direitos humanos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais da região. Especificamente, procurou buscou chamar a atenção da Corte Interamericana para o descumprimento, por parte do Estado brasileiro, de sua obrigação internacional de realizar Estudos de Impacto Social e Ambiental (EISAs). A partir da análise do caso, apontamos no escrito de Amicus Curiae que o Brasil não cumpriu essa obrigação internacional, porque não foram realizados estudos de impacto antes da criação, implementação ou da autorização de novas etapas do CLA ao longo das últimas quatro décadas. Alguns estudos foram realizados, porém o foram em violação dos padrões interamericanos, uma vez que, por exemplo, não foram elaborados por uma entidade independente e não foi viabilizada e tampouco garantida a participação das Comunidades Quilombolas de Alcântara.

Encontro entre povos indígenas no âmbito da sessão da Corte Interamericana no Chile

Outros casos emblemáticos tiveram suas audiências marcadas para o mesmo período de sessões da Corte Interamericana, incluindo o caso da Nação U’wa, da Colômbia, que sofreu violações de direitos pela implementação de empreendimentos de petróleo e gás em seu território sem consulta e consentimento. Para aproveitar a presença de tantas lideranças e membros dessas comunidades em Santiago, a ERI organizou um “Conversatório” entre as entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara – incluindo a ATEQUILA, o STTR,  o MABE e a MOMTRA – e a Asociación de Autoridades Tradicionales y Cabildos U’wa (ASOU’WA), bem como representantes dos povos Sarayaku, do Equador, e Mapuche, do Chile.

Encontro entre povos indígenas no âmbito da sessão da Corte Interamericana no Chile

Ao longo do Conversatório, as comunidades puderam compartilhar experiências e estratégias de luta, incluindo uma avaliação das ações frente ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, bem como alinhar agendas e lutas comuns.

Danilo Serejo e Juliana Bravo Valencia, Diretora do Programa Amazônia

Além disso, Danilo Serejo, líder e assessor jurídico das comunidades quilombolas, apresentou seu livro “A convenção n° 169 da OIT e a questão quilombola: elementos para o debate”, publicado pela Justiça Global, que sistematiza um conhecimento construído a partir das experiências de apropriação do mecanismo e nos oferece um conjunto de reflexões sobre a aplicação do tratado.

Aguardamos, junto às comunidades e organizações de base de Alcântara, aos movimentos sociais e organizações aliadas, uma sentença da Corte Interamericana que seja categórica em afirmar os direitos dos povos quilombolas e comunidades tradicionais do Brasil e de toda a região interamericana. Como dizem os quilombos do Maranhão: “Alcântara é Quilombola!”. E que possamos gritar:

“A América também é Quilombola!”.

Contato

Cecilia Vieira – cecilia@earthrights.org

Bernardo Xavier dos S. Santiago – bernardo@earthrights.org